Gonçalo Amaral, terça-feira passada na Praia do Alvor. Foto LC/ExpressoOs dedos estão amarelos pelo uso do cigarro atrás de cigarro. Quando chego ao seu encontro mal o reconheço. O corte do bigode à
Saddam mudou-lhe a face e sem aqueles óculos espelhados panorâmicos como um pára-brisas ainda menos se reconhece.
Está calor e o encontro numa cervejaria de Portimão ajuda a refrescar o ambiente. Está um dia sufocante e aquele homem que protagonizara o filme real do drama real, que foi o desaparecimento da pequena
Maddie, estava agora ali sentado,
sózinho, no dia que era o primeiro do resto da sua vida: Gonçalo Amaral era a partir daquela manhã um polícia na reforma, por sua vontade, embora tenha apenas 49 anos.
Na véspera
pôs um boné que um seu mestre lhe oferecera, e que nunca usara, e como era o último dia de acção encerrou uma
truculenta carreira de inspector da Judiciária apanhando dois mil e quinhentos quilos de haxixe a bordo de uma traineira. O último golo. Uma façanha de pequena grandeza profissional, comparada com a responsabilidade anterior como coordenador e líder de equipas que trabalharam nos casos Joana e
Maddie.
Gonçalo está nervoso, vê-se na voz e num riso para dentro que disfarça. Há muito que este personagem me despertava a curiosidade, por isso fiquei entusiasmado em o ir fotografar para o Expresso, esta semana no Algarve. É uma figura de filme.
Lera sobre Gonçalo descrições incríveis sobre a sua personalidade e pelo estilo muito pessoal em campo, na investigação. Percebi logo que era um anti-burocrata, alguém que usava o instinto, a emoção, a inteligência na investigação. Também se percebia que era invejado e só não o derrubariam se não pudessem. Puderam e tramaram-no.
Para um profissional empenhado ver a carreira manchada por calúnias, depois de uma demissão primeiro conhecida pelos jornais, sem explicações da hierarquia, sem respeito. Perdemos a dignidade e o sentido da honra. O inspector não resistiu e demitiu-se da Judiciária, a polícia que era a sua vida. Escreveu ao director da PJ que gostava de Mozart a dizer-lhe que tinha direito à sua honra. Nunca teve resposta e o próprio director acabou despedido no meio da confusão.
Sacrificou conforto, família, para ter uma recompensa em forma de desprezo.
Ao ouvi-lo em
off percebe-se que muito há a saber ainda do caso
Maddie. Que houve procedimentos que ficaram por esclarecer, testemunhas por ouvir, pormenores por esclarecer. Houve uma pressão
insuportável do poder político, da imprensa, da opinião pública.
Há factos que são factos e que por si não se podem provar, mas há factos que só por si exigiriam medidas jurídicas concretas. Porque nunca se avançou contra o casal pelo facto de ter havido
óbvia negligência ? É um dos mistérios.
Quando lhe sugiro para o fotografar na Praia da Luz, a mulher que tinha entretanto chegado, diz-me: "Não lhe peça isso! Pelo que conheço do
Gonçalo ele nunca mais na vida vai querer ir à Praia da Luz!".
Por troca Gonçalo aceita ser
fotografado na Praia do Alvor, o local onde termina o livro que sairá logo que o segredo de justiça seja levantado, e onde passou largas horas a jantar e almoçar num restaurante local de peixe, com os seus colegas polícias ingleses.
Digo-lhe que passeie na praia e me esqueça. Vou fotografando atrás dele, mais parece um leão enjaulado na sua própria liberdade, quando lhe peço para se pôr junto à água hesita:"Nunca se sabe se esta zona é pantanosa!"- e avança pisando antes o terreno com rara prudência.
Depois convida para umas sardinhas, que ele próprio acaba de assar e retira do grelhador. Passados uns minutos de franca descontracção parte já o Sol começa a caír. Tem de ir buscar as filhas. A mais pequena tem uma idade muito próxima à de
Maddie.
Abraça a mulher, põe os já emblemátcos óculos de Sol espelhados, arranca rumo ao futuro.
Gonçalo Amaral reformou-se.
Tudo me leva a acreditar que, mesmo resistindo a si próprio, Gonçalo Amaral vai voltar um dia ao local do crime.
PS: Goncalo Amaral reformou-se aos 49 anos e começou a trabalhar aos 14.