Um castanheiro com 300 anos. Hoje. Foto de Luiz Carvalho
Numa bomba de gasolina perto de Sernancelhe, em pleno
Cavaquistão, pára ao meu lado um Mercedes
CLK. A condutora é jovem e a acompanhante com ar de sua mãe tem um aspecto de mulher do campo, tradicional. A gasolineira, jovem e magra, traz uma daquelas calças sem gola e umbigo à mostra. A Beira- Alta que eu conheci na minha infância era bem diferente. Mudou e ainda bem. Houve por aqui um desenvolvimento evidente, que não tem só a ver com o regresso de alguns emigrantes. Os apoios comunitários para uma geração que hoje tem à volta de 30-40 anos ( alguns filhos de emigrantes mas que nunca daqui saíram) e o papel das autarquias no chamado progresso ( ainda que pago à custa dos contribuintes que nunca aqui puseram os pés!) possibilitaram o aparecimento de uma região onde hoje se sente qualidade de vida e bem estar.
As moradias enormes desintegradas da paisagem, ostensivas e de uma certa arrogância nova-rica estão por todo o lado. Os armazéns que desafiam a paisagem,
estragam a escala e assustam os lobos, proliferam e dão o sinal de que há uma industria a laborar. A castanha, o granito, os frangos, são algumas das
actividades que trazem dinheiro. Os emigrantes rebentam foguetes e trazem um parque automóvel de ficar boquiaberto. Atrás da minha casa, num beco onde outrora as vacas deixavam a bosta a ornamentar a quelha, estava um BMW série 7,
last model. “É igual ao do Cavaco Silva”- alguém comentava com pronúncia do Norte.
A vila de Sernancelhe, que foi um baluarte contra o comunismo da 5ª Divisão em 1975, defendido pelo Padre Cândido de Azevedo, seguramente o último
salazarista vivo ( Jaime Nogueira Pinto é um estagiário comparado com ele!) é hoje um concelho presidido por um
PPD, que nunca o foi, e que apostou na pujança da terra. Numa vila pequena, ele conseguiu um centro de saúde excelente, um centro cultural de
arquitectura arrojada, um lar de idosos
modernaço, rotundas para a malta andar às
boltinhas, estradas e circunvalações, uma biblioteca municipal e muitas obras que não consigo citar de memória. Há estradas alcatroadas até para um
souto do meu pai que hoje visitei e onde existe um castanheiro da família com 300 anos.
Para quem precisou de meter uma cunha a um
salazarista influente para nos anos 70 a
Sarzeda ( a minha aldeia) ter electricidade ( anos 70 meus caros!) é de se ficar espantado com a competência do autarca de Sernancelhe. Quando olho para esta obra feita sinto satisfação, porque é bom sair do
miserabilismo e dar dignidade e conforto a esta gente que sempre viveu no esforço máximo para uma vida mínima. Há no entanto um certo exagero em custos em
infra-estruturas para uma comunidade tão pequena. Por exemplo: hoje descobri uma pista para
putos andarem de carros de pedais para aprenderem o código da estrada. Parece que o Sampaio foi lá inaugurar aquilo. Às 5 da tarde ainda estava aberta e ao lado havia crianças a saírem de um
ATL num palacete comprado pela câmara e restaurado. Quem me dera ter aquele luxo no Estoril para o meu filho ! Tudo á borla, pago aqui pelos
totós no IRS. Mas tem e isso é bom.
Vive-se muito melhor na província ( desculpem o termo) do que nas grandes cidades e aqui há uma relação de proximidade enorme entre o poder autárquico e os eleitores. Eu que sou um anti-autarcas primário acabo por ter de reconhecer que aqui o Poder dos eleitores e o controle do exercício do Poder é muito mais
directo e eficaz. Falam do Jardim ? Venham ver aqui. É a mesma escola: competência, obra feita, proximidade com os eleitores e favoritismo político. “ Quem está comigo mama, quem não está que esteja”- assim comentava para mim um preterido pelo Presidente.
O desenvolvimento deixa para trás a memória, a cultura ancestral, a poesia que estas terras continham. O falar cantado já quase não se ouve. Numa pisaria de um ex-emigrante, em Sernancelhe, entra uma francesa de “
calçonetes” e pede em francês e é servida na língua mãe.
Ça va bien ! Bom... Uns metros acima, ao lado daquela que foi a padaria mais famosa da terra lá está uma loja de chineses a “
falalem” chinês. Não acredito !Lá está a loja cheia de tralha. Nenhum beirão precisa de nenhum traste daqueles. Chineses no
Cavaquistão !
Chinocas nas terras do Demo ! Fala-se chinês na terra do Aquilino Ribeiro?
Pourquoi-
pas ?
Por detrás do desenvolvimento: a paisagem sacrificada ao negócio do granito para exportação, o lixo que invadiu as margens do Rio Távora onde eu passei tardes de encanto com o meu filho André há 20 anos, o desprezo pelo património, o fim da
arquitectura popular, os supermercados em força, o fim das tascas e das mercearias de aldeia ( bem porcas, sempre sem nada e com produtos fora de prazo, é verdade!) a perda de uma harmonia que cruzava as gentes e as suas poses, o som, a luz, o cheiro ( ás vezes a merda de boi!!) a cozinha tradicional, os cantares, as motorizadas
Famel Periquito, as bicicletas à inglesa, a fé.
É um Portugal muito melhor, sem dúvida. Se tivéssemos podido acompanhar o desenvolvimento cultural com o económico isto podia ser hoje um mundo quase perfeito.
Ao caír do dia, no fim do caminho quando o Range já não tem espaço para avançar entre muros de pedra caída e silvas, não muito longe uma figura foge recortada pelo Sol do entardecer. Foge e ainda me olha. Uma raposa! Divino.
Andei uma vida para ver isto.