Toda a história de Maria das Dores no CM de hoje:
O puzzle do crime tem peças soltas.
As dúvidas esbarram no hábil silêncio da Polícia Judiciária (PJ) e assaltam o pai de David Motta dia e noite. “O meu dinheiro pode ter sido usado para o que aconteceu”, arrisca o professor de História, com voz trémula, à Domingo.
Foi casado com Maria das Dores, a socialite presa por suspeita de ter encomendado a morte do empresário e último marido, Paulo Cruz. Quanto ao dinheiro, cerca de 150 mil euros, foi-lhe “roubado” pelo filho David – confidente da mãe – que assim financiou, pelo menos, a viagem com estadia prolongada em Nova Iorque. De Maria, que nas festas do jet set troca o vulgar nome ‘das Dores’ por ‘Teresa’, o professor só quer distância física e emocional. “É uma pessoa perigosa”, que nunca olhou a meios para ascender socialmente. Maria é suspeita de ter ultrapassado todos os limites e a PJ apanhou-a. Na última semana desceu ao inferno. Deixou o condomínio fechado em Lisboa. Agora passa os dias entre a cela e o pátio da cadeia de Tires, em Cascais.
O professor recusa ser identificado, não quer o seu nome “envolvido com o dessa gente”, mas ainda se preocupa com o filho David, 20 anos, encandeado pelo brilho do jet set – ao ponto de duplicar a consoante do apelido, julgando que o torna mais distinto. O pai não o vê “há sete meses”, desde que, com uma assinatura forjada, lhe ‘limpou’ a conta bancária. Na altura foi apresentada queixa, confirma fonte policial. Mesmo assim, David não teve pejo de, numa entrevista publicada esta semana na Imprensa, afirmar que “pai há só um”. E o dele “é insubstituível”.
Decerto ignorando a intensidade do amor filial, o professor sucumbiu ao golpe. “Tudo isto me causou imensos problemas.” Incapaz de manter a concentração no trabalho, ficou um mês de baixa. “Nem queria ver ninguém.” Não queria também que alguém mal intencionado o visse a ele. “Não me senti muito seguro”, admite o pai de David, sem deixar de repetir: “Ele é o meu filho.” David Motta, contactado pela Domingo, recusou-se a prestar qualquer declaração.
Quando se lhe pergunta se imagina como terá sido aplicado o seu dinheiro, o pai de David garante já ter falado “onde tinha de falar”, remetendo para quem investiga o caso. Deixa contudo escapar: “Infelizmente tive um pressentimento do que iria acontecer.” O que aconteceu foi a morte violenta do empresário Paulo Cruz. Na quarta-feira David ainda não tinha visitado ou contactado telefonicamente o pai. Mas voltou de Nova Iorque para o enterro do padrasto e ficou para dar apoio à mãe.
José Castelo Branco, negociante de arte e figura do ‘social’, acolheu-o em casa. O ‘conde’, como ficou conhecido no reality show da TVI ‘Quinta das Celebridades’, ora afirma mal conhecer a mãe de David ora vai visitá-la à prisão – como se de uma grande amiga se tratasse. Maria das Dores “é uma mulher perigosa”, sublinha o ex-marido.
“Você sabe de certeza quem eu sou.” A viúva desafiava o jornalista dias antes de ser presa. Um amigo próximo explica que “a vida social intensa e a ilusão de ser famosa se transformaram numa obsessão”. Maior ainda desde que, há cinco anos, Maria das Dores perdeu o antebraço esquerdo, num acidente de viação. O marido, Paulo Cruz, conduzia o carro. “Ela era uma mulher muito bonita e magra. As coisas complicaram-se depois do desastre no Alentejo. Deixou de conseguir fazer coisas básicas, como lavar a loiça, calçar--se ou vestir-se sozinha...”
Se já antes se revelara uma consumidora compulsiva, após o acidente, “como forma de compensação”, Maria das Dores perdeu qualquer noção de limite. Engordou. “O marido começou a perder o interesse por ela”, deixando- -a “encurralada” – disposta a tudo. O divórcio era já “ponto assente” para o empresário. Maria iria “perder o sustento”, mas “sempre se recusou a admiti-lo” entre os amigos. Poderá ter sido então que, a provarem-se as suspeitas da PJ, a morte de Paulo Cruz começou a ser desenhada.
Ele não aprovava o estilo de vida da mulher. Não ombreava com ela nas fotografias das revistas. Dizem os amigos que vivia para o trabalho. Descontraía apenas quando tocava piano, participava em provas de vinhos ou, aos sábados, levava o filho D., neste momento entregue aos avós paternos, a passear. Dizem também que foi um aluno aplicado no Colégio de S. João de Brito, contemporâneo de Paulo Portas, ex-ministro da Defesa. Terminaram ambos o liceu em 1979, embora em turmas diferentes – Portas em Humanidades; Cruz em Ciências. O ex-ministro fez saber que não se lembrava do colega. Paulo Cruz também não parecia interessado em ser lembrado pelos famosos. Já Maria das Dores...
Muito antes do acidente, nos anos 80, casada ainda com o professor de História, Maria das Dores vivia já, claramente, acima das suas reais possibilidades financeiras. Trabalhava no departamento de Informática do Banco Português do Atlântico, actualmente parte do Millennium BCP. Pedia dinheiro emprestado às colegas, mas ia de táxi para casa enquanto elas usavam os transportes públicos. Era costume, na hora de almoço, as funcionárias darem um salto à Loja das Meias, na Rua Castilho. Quando Mimi, assim fazia questão de ser chamada, gostava de uma blusa ou de um vestido comprava o modelo em várias cores. Pagava com cheques pré-datados.
Naquela altura, o que surpreendia a empregada era encontrar o frigorífico e a despensa vazios. “Não havia nada.” Mesmo se ali vive uma criança de pouca idade, David. Também a mãe de ‘Mimi’ lá morou. Quando a empregada chegava de manhã, a idosa – chamavam-lhe ‘avó Nini’ – ainda não tinha comido. “Quem lhe trazia o pequeno-almoço era a empregada”, contam as colegas de Mimi.
O mundo a que Maria das Dores almejava (e onde, iludida, julgava viver já) era outro. Um mundo, onde, sem esforço, não faltava nem dinheiro nem status, conferido também por um “dr.” antes do nome. Depois de frequentar um breve curso proporcionado pelo banco onde trabalhava, Mimi exigiu que passassem a tratá-la por “doutora”. Riram-se muito as duas colegas que lhe fizeram os exames de Francês e Matemática, convencidas de que apenas a ajudavam num trabalho de casa. “Era simpática” e com simpatia “dava a volta às pessoas”. No banco, mostrava às amigas fotografias tiradas na praia do Alvor onde aparecia com Mário Soares. “Estás quase tão gordinha como ele”, brincavam elas.
Mimi sempre foi fiel ao Algarve, onde nasceu. Na praia da Restinga, em Alvor, “adorava falar de Margarida Marante e de outras pessoas que dizia conhecer muito bem em Lisboa”, conta Maurílio Andres, 49 anos, concessionário da praia há 22. O casal Pereira da Cruz passou a alugar ali “sempre o mesmo toldo” no Verão. Desde o acidente ficavam sempre “15 dias a três semanas”. O que mais preocupava Maria, mal punha os pés no areal, era saber “quem vinha e quem não vinha; queria acompanhar tudo da vida das outras pessoas”. Queria saber que toldos costumavam fazer sombra, entre outros, ao antigo Presidente da República Mário Soares e família.
Paulo Cruz era “discreto” e “sempre atento ao filho” D., de seis anos, enquanto ‘Mimi’, nome que lhe ficou do Liceu de Portimão, gostava “mais de exibir-se. Adorava dizer que conhecia o Herman ou o José Castelo Branco”. Era até “arrogante com os empregados”, conta uma amiga de infância, que pede anonimato, dona de um conhecido restaurante em Alvor. Foi no restaurante que as duas mulheres se reencontraram, numa noite de Agosto. A socialite e Duarte Menezes tinham-se sentado para uma mariscada.
O célebre cabeleireiro conheceu Maria das Dores “há pouco mais de um ano”, revela fonte próxima dos dois. No último Verão, o casal propôs-lhe a abertura, em sociedade, de um novo salão de cabeleireiro. Menezes passou dez dias na casa do Alvor. Paulo Cruz regressou ao trabalho em Lisboa. Os dois amigos continuaram ao sol, seguindo a rota das festas.
Em Setembro a amizade acabou. Maria das Dores “pediu umas jóias emprestadas à prima direita, São Melo, com o pretexto de ter sido convidada para uma festa dourada”, mas todo o ouro “acabou directamente no prego”. Maria quis envolver Duarte Menezes no assunto. Ele não gostou. Zangaram-se. Também a prima cortou relações com ela.
São Melo só voltou a vê-la na tarde do crime – 20 de Janeiro –, quando Duarte Menezes, que no início do ano acedera a reconciliar-se com a socialite, lhe ligou, “aflito, a dizer que o Paulo se tinha enforcado”. Menezes enganou-se. Paulo foi morto à pancada – o principal suspeito é João Silva, um brasileiro, antigo motorista de Maria das Dores (ver pág. 25). São Melo confirma à Domingo tê-lo visto “duas vezes à porta do cabeleireiro”. No “autêntico filme de terror” que se seguiu, Maria é a actriz principal, mas não desarma: os amigos vão encontrá-la “em estado de choque, muito preocupada com o marido”.
O cabeleireiro tinha reatado a relação com Maria seis dias antes do crime, quando ela lhe enviou uma mensagem. “Era um disparate continuarem chateados; ela quis reaproximar-se”, conta um amigo comum. Os dois encontram--se no Largo do Rato, em Lisboa. Pouco depois de Menezes entrar no carro de Maria das Dores, ela atendeu o telemóvel aos gritos. “Mas eu não lhe dou o divórcio!”, atirou a alguém. Menezes quis saber o que se passava, mas “ela disfarçou”, perguntando ao cabeleireiro o que fazia na noite de sábado seguinte, o dia em que o marido haveria de ser assassinado. Ele disse-lhe que ia à missa. “Calha bem”, porque “o Paulo tem um jantar da empresa”, respondeu ela. Maria decidiu ir também à igreja, “rezar pela mãe”, que morreu no princípio do Verão.
No dia combinado falaram “muito bem” ao telemóvel, mantendo a combinação, sem que a mulher do empresário hesitasse ou mostrasse nervosismo. Às 18h15 o cabeleireiro ligou-lhe de novo “para saber se estava atrasada”. Ela, “muito ansiosa”, pediu-lhe para ir ter ao número 11 da Avenida António Augusto Aguiar. Soluçou e disse-lhe: “Vem cá ter porque o Paulo deve ter tido um AVC e não me abre a porta”. Quando o cabeleireiro chegou já outras pessoas consolavam Maria.
O cadáver do empresário foi retirado de casa; Maria das Dores “chorava, mostrava-se destroçada”, conta uma amiga íntima. O cabeleireiro acompanhou a socialite ao Hospital da CUF e à PJ. Para além de Menezes, com Maria estava ainda a prima São Melo e três advogados do escritório situado no andar por cima do local do crime.
Congeladas as contas do empresário por um juiz de Instrução Criminal, Duarte Menezes comoveu-se com a situação da viúva. “Carregou-lhe várias vezes o telemóvel, deu-lhe cem euros para pagar à empregada, mais 50 para a criança, fez-lhe as compras de supermercado e chegou a levar-lhe peixe com espinafres e trouxas de ovos. Mimou-a.”
Menezes não sabia que se “prestava a um papel ridículo”. Quem o conhece bem reforça que o cabeleireiro pensou estar a ajudar uma amiga “muito apaixonada” pelo marido, vítima de um brutal homicídio. Que chegou a ir com ela ao Chiado para comprar-lhe “uma Bíblia e o livro ‘Conversas com Deus’”. Também tentava consolá-la à noite “com cânticos litúrgicos” pelo telemóvel. Nem quis acreditar quando, uma semana depois, Maria das Dores foi presa. “Ainda fica doido quando pensa que os inspectores da PJ o escutaram a entoar cânticos ao telefone...”
No dia do velório, todos recordam os familiares de Paulo à entrada da igreja. Nenhum “dirigiu a palavra à nora”. Uma semana depois, na missa de Sétimo Dia, Maria foi ter com a sogra. Pediu que a deixassem continuar a frequentar a casa, no condomínio Jardins do Lumiar, em Lisboa. “Minha querida, só quem pode perdoar é Deus”, respondeu-lhe Maria Manuel Pereira da Cruz, mãe do empresário. Segundo conta José Castelo Branco, no dia anterior Maria das Dores e o filho David foram injectar botox para ficarem mais animados.
A Domingo sabe que, após a missa, a que assistiram o ‘conde’ e Betty Grafstein, aquele ligou para o restaurante Valentino, reservando mesa para sete pessoas. Do restaurante contam que o grupo se entreteve “a beber champanhe”, mas, “passados 45 minutos”, Maria e o filho David saíram juntos. “A viúva estava nervosa e cabisbaixa. Não lhe apetecia festejar”. Quanto a José Castelo Branco, garantem-nos que “mente ao dizer que só esteve com ela três vezes. Maria tinha jóias compradas à Betty e eles davam-se todos muito bem”. Tempos áureos para Maria das Dores. Não chegou a subir muito alto. Tão alto como queria. Mas a queda foi enorme.
MORTE BRUTAL EM MENOS DE UM MINUTO
Paulo e ‘Teresa’ – na verdade Maria das Dores – Cruz chegaram juntos ao número 11 da Avenida António Augusto Aguiar ainda não eram 17h00 de 20 de Janeiro, sábado. Viviam juntos no Lumiar mas arrendavam ali um apartamento há seis meses. Só iam fazer “umas medições”, disse Teresa, porque as obras que ainda mal tinham começado e estavam embargadas a pedido do vizinho de baixo. Ele apanhou o elevador para o terceiro andar, enquanto ela, que sofre de claustrofobia subiu as escadas. A Domingo subiu das duas formas, sabe que Paulo só demorou 28 segundos e a mulher, mesmo “carregada com umas folhas”, não demoraria mais de um minuto e meio a subir os 79 degraus. Ou seja, quem enfiou um saco de plástico na cabeça do empresário e lhe desferiu duas pancadas fatais com um objecto contundente na cabeça não teve mais de um minuto para o fazer sem que a mulher percebesse. Antes de ser detida, Maria garantiu ter apenas visto “um vulto” e ouvido “o som parecido ao de um móvel arrastado”.
'O MEU FILHO NÃO É UM MENINO VIOLENTO'
O motorista João Paulo de Carvalho Silva, de 26 anos, a quem alegadamente Maria das Dores terá encomendado o crime, deixou o lar materno aos 20, contra a vontade da mãe, de 55, e embarcou para Portugal na esperança de recomeçar a vida no nosso país. O pai de João Paulo, de 63 anos, já divorciado da mãe, foi contactado pelo filho que, da prisão, o informou estar detido preventivamente por suspeita de envolvimento na morte de Paulo Cruz, seu patrão. Os pais do suspeito estão destroçados com a situação e temem pela “integridade física” do filho que, de acordo com quem o conhecia, “era muito educado e trabalhador”. Por enquanto e “para que a justiça funcione correctamente”, a mãe e o pai de João Paulo preferem não ser identificados. Contudo, a Domingo conversou com a progenitora, a viver em Belo Horizonte, Brasil, que nos confidenciou ter ficado “surpreendida e boquiaberta” com a notícia da prisão de João Paulo, que tem uma irmã de 19 anos a estudar e a viver com a família.
Alexandra Ferreira, Henrique Machado, Isabel Ramos/ Correio da Manhã