domingo, julho 26, 2009
Hoje sonhei com Marcello Caetano !
"Marcelo Caetano, o homem que perdeu a fé"- a biografia feita pela minha amiga e colega no Expresso, Manuela Goucha Soares, fez-me hoje sonhar com o continuador de Salazar. Acabei de ler o livro eram 4 da manhã no silêncio do monte alentejano onde estou perto de S. Miguel, Odeceixe.
A escrita da Manuela é simples, directa, escorreita, e de quando em vez deixa cair pormenores que dão á história uma maior autenticidade e permitem revelar em síntese traços fortes do retratado. É uma escrita de príncipe: cativa sem floreados, tem ritmo e é de uma economia total de palavras. Está lá o que é necessário. Agarra, deixou-me de rastos até de madrugada.
O livro tem por detrás um grande trabalho de pesquisa, reportagem. Ela é uma repórter notável. Trabalhei com a Manuela várias vezes ao longo dos últimos 20 anos, mas foi há dois na Libéria atrás de António Guterres primeiro, e depois num retrato sobre aquele esquecido e perigoso país africano, que pude ver a sua fibra de repórter.
A entrevista com a Presidente da Libéria foi uma audiência de grande furo jornalístico. A Manuela tem um charme e uma educação superior, que se sente na forma de perguntar e estruturar o trabalho. Essa qualidade sente-se aqui na biografia de Marcelo.
A história de Marcelo tocou-me bastante. Ele faz parte das minhas memórias de adolescente. Numa das fotografias do livro, em que ele vem á varanda de sua casa agradecer aos populares depois de ter sido eleito, eu estava lá. Ou porque ia a passar- eu namorava perto de um jardim de sua casa, ou porque sabia que ia haver aquela pequena manifestação. Morava a 500 metros da casa dele em Alvalade, Lisboa, e via-o passar muitas vezes no seu Mercedes 280 SEL, DF-78-44.
Por ali perto moravam também o actor Américo Coimbra e o seu Porsche 911 (!), o realizador da RTP Alfredo Tropa (que realizou as Conversas em Família), o José Cardoso Pires, o economista Pereira de Moura, o pintor Tomás Mateus, Daciano Costa, José Gomes Ferreira...era um bairro de notáveis que só mais tarde, já adulto, vim a perceber.
Aos 15 anos era completamente apolítico, mas dois anos mais tarde já detestava o marcelismo e ficava danado com as conversas em família.
Percebia que o marcelismo tinha uma componente tecnocrática evoluída, houve grandes mudanças no progresso do país, mas politicamente era um regime anacrónico, fora do tempo, desligado da juventude e das pessoas (um pouco como hoje).
No liceu Padre António Vieira onde eu andava com Louçã e Santana Lopes, e outros, o ambiente era de contestação total.
O livro da Manuela trouxe-me de volta esses tempos e mostrou-me um Marcelo íntegro e humanista, cheio de coerência e de projecto político. Um projecto que teria sido extraordinário se pudesse ter sido posto em prática em 1951.
Um homem fora de tempo, injustiçado e abandonado pelos seguidores. Um homem que amava a política e que morreu na véspera em que faria 30 anos de casado, com aquela a quem nunca abandonou na doença, a sua mulher Teresa. Uma vida subida a pulso, na maior da austeridade e da modéstia.
Um homem de cultura, porventura demasiado inflexível, mas que no fim da vida acaba a defender o divórcio, por evidente solidariedade para com a neta casada com Abel Pinheiro (uma revelação para mim).
A derrocada de uma vida, a total desilusão de quem viu ruir uma ideologia, um projecto, uma ideia patriótica. Discordo totalmente da sua visão política e ideológica, mas não posso deixar de respeitar a integridade e coerência deste homem. Assim se pudesse dizer o mesmo da maioria que pratica política nos dias de hoje.
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Acabei de rever no canal holywood o filme "O Último Samurai". Um filme que me marcou pelo que personifica. A Honra e a Palavra.
ResponderEliminarPor incrível que pareça, foi precisamente esse pensamento, que me fez despontar uma enorme tristeza. Não há Honra, por isso nem Glória. E a Palavra, só tem significado nos dicionários.
Dá pena olhar para o lado e não ver... nada.