Páginas

domingo, fevereiro 22, 2009

Morreu o meu Mestre Lagoa

Morreu o Mestre Lagoa. O meu Mestre.

Há pessoas, muito poucas, que se cruzaram connosco na vida e nos transformaram. Deram-nos um rumo, abriram-nos um caminho, serviram-nos de exemplo, embora nunca nos tivessem dado uma cartilha, obrigado a cumprir regras e normas, porventura nem terão falado demasiado da sua arte, do seu ofício. Limitaram-se a transmitir a emoção, que provoca na gente de talento o acto de criar, recriar, essa capacidade supra, que alguns têm, de refazer a vida com a gramática própria da linguagem artística.

Várias gerações de pintores, escultores, designers e arquitectos passaram pelas aulas do Mestre Lagoa Henriques. Eu tive o grande privilégio de ele me ter encaminhado para as minhas primeiras aulas de desenho de estátua, por ironia da vida, naquela precisa tarde de 1972, em que o seu atelier ardeu por completo. Eu tinha-lhe batido à porta minutos antes, ninguém respondeu, e bastou ter atravessado o largo entre o atelier e a estação de Belém para ver uma nuvem enorme de fumo a sair do antigo pavilhão da Exposição do Mundo Português, feito em estafe, e de alguém que gritava aos murros à porta.

Corri amedrontado, ainda fiz algumas fotografias com uma Leica IIIG e depois... foi a confusão total. No dia seguinte o jornal A Capital trazia uma foto pungente na primeira página, do fotógrafo Alberto Peixoto: Lagoa salvara das chamas o objecto para ele mais precioso, o retrato da sua mãe.

Com ele aprendi a entender a estrutura dos objectos, a perceber as texturas, os volumes, a luz e a sombra, a desenhar percebendo e não copiando. Com ele percebi o ridículo do bonitinho, do giro, do jeitoso. Percebi sim, que a criação começa no entendimento, na interpretação, na capacidade do gesto expressar sentimentos, intenções. A relação da palavra e da imagem, a importância do ritmo gráfico, do enquadramento, na ousadia do traço, tudo conceitos de que ele impregnou várias gerações de artistas e arquitectos.

Foi ele que olhou para as minhas fotografias e viu nelas uma intenção e entendeu que havia uma história intrínseca. Pegou num trabalho e levou-o ao escritor Carlos de Oliveira, um conjunto de fotografias, desenhos e textos sobre o livro Uma Casa na Duna. Um atrevimento académico, quando nos anos setenta os alunos se limitavam a fazer bem o trabalhinho de desenho pedido.

Depois fui-o encontrando ao longo dos anos, muitas vezes com o Carlos Amado, o seu companheiro de sempre. A última vez que o vi foi perto da Universidade Autónoma, onde então ele dava aulas no curso de arquitectura e eu no curso de comunicação social. O Mestre Lagoa estava parado junto a uma porta pintada com graffitis e admirava-a com especial atenção. Para ele a arte começava na rua, na capacidade de olhar, o que tem tudo a ver com fotografia e com aquela curiosidade intensa de que falava Henri Cartier-Bresson: a curiosidade surrealista.

Tudo o que eu escreva será pouco sobre o que sinto, e o que muitos sentem hoje, com a morte do Mestre Lagoa. Foi uma referência inesquecível. Uma pessoa sensível, de humor inconstante, com muito mau feitio, com um abençoado mau feitio. E com um sentido de humor extraordinário. A seguir ao 25 de Abril, não o deixaram ensinar em arquitectura por ele não ter uma cadeira qualquer. Ele não esteve com meias medidas: inscreveu-se como aluno e passou a ir às aulas de que deveria ser ele o professor. Como te compreendo meu querido Mestre!...

1 comentário:

  1. LUIZ............Um pivot lindinho no jornal da noite disse que "morreu Lagoa Henriques, conhecido pela estátua de Fernando Pessoa no Chiado"....palavras para quê?........mais um saber que se vai sem saber que o saber por vezes não fica....que descanse em paz

    ResponderEliminar