Morreu o Mestre Lagoa. O meu Mestre.
Há pessoas, muito poucas, que se cruzaram connosco na vida e nos transformaram. Deram-nos um rumo, abriram-nos um caminho, serviram-nos de exemplo, embora nunca nos tivessem dado uma cartilha, obrigado a cumprir regras e normas, porventura nem terão falado demasiado da sua arte, do seu ofício. Limitaram-se a transmitir a emoção, que provoca na gente de talento o acto de criar, recriar, essa capacidade supra, que alguns têm, de refazer a vida com a gramática própria da linguagem artística.
Várias gerações de pintores, escultores, designers e arquitectos passaram pelas aulas do Mestre Lagoa Henriques. Eu tive o grande privilégio de ele me ter encaminhado para as minhas primeiras aulas de desenho de estátua, por ironia da vida, naquela precisa tarde de 1972, em que o seu atelier ardeu por completo. Eu tinha-lhe batido à porta minutos antes, ninguém respondeu, e bastou ter atravessado o largo entre o atelier e a estação de Belém para ver uma nuvem enorme de fumo a sair do antigo pavilhão da Exposição do Mundo Português, feito em estafe, e de alguém que gritava aos murros à porta.
Corri amedrontado, ainda fiz algumas fotografias com uma Leica IIIG e depois... foi a confusão total. No dia seguinte o jornal A Capital trazia uma foto pungente na primeira página, do fotógrafo Alberto Peixoto: Lagoa salvara das chamas o objecto para ele mais precioso, o retrato da sua mãe.
Com ele aprendi a entender a estrutura dos objectos, a perceber as texturas, os volumes, a luz e a sombra, a desenhar percebendo e não copiando. Com ele percebi o ridículo do bonitinho, do giro, do jeitoso. Percebi sim, que a criação começa no entendimento, na interpretação, na capacidade do gesto expressar sentimentos, intenções. A relação da palavra e da imagem, a importância do ritmo gráfico, do enquadramento, na ousadia do traço, tudo conceitos de que ele impregnou várias gerações de artistas e arquitectos.
Foi ele que olhou para as minhas fotografias e viu nelas uma intenção e entendeu que havia uma história intrínseca. Pegou num trabalho e levou-o ao escritor Carlos de Oliveira, um conjunto de fotografias, desenhos e textos sobre o livro Uma Casa na Duna. Um atrevimento académico, quando nos anos setenta os alunos se limitavam a fazer bem o trabalhinho de desenho pedido.
Depois fui-o encontrando ao longo dos anos, muitas vezes com o Carlos Amado, o seu companheiro de sempre. A última vez que o vi foi perto da Universidade Autónoma, onde então ele dava aulas no curso de arquitectura e eu no curso de comunicação social. O Mestre Lagoa estava parado junto a uma porta pintada com graffitis e admirava-a com especial atenção. Para ele a arte começava na rua, na capacidade de olhar, o que tem tudo a ver com fotografia e com aquela curiosidade intensa de que falava Henri Cartier-Bresson: a curiosidade surrealista.
Tudo o que eu escreva será pouco sobre o que sinto, e o que muitos sentem hoje, com a morte do Mestre Lagoa. Foi uma referência inesquecível. Uma pessoa sensível, de humor inconstante, com muito mau feitio, com um abençoado mau feitio. E com um sentido de humor extraordinário. A seguir ao 25 de Abril, não o deixaram ensinar em arquitectura por ele não ter uma cadeira qualquer. Ele não esteve com meias medidas: inscreveu-se como aluno e passou a ir às aulas de que deveria ser ele o professor. Como te compreendo meu querido Mestre!...
LUIZ............Um pivot lindinho no jornal da noite disse que "morreu Lagoa Henriques, conhecido pela estátua de Fernando Pessoa no Chiado"....palavras para quê?........mais um saber que se vai sem saber que o saber por vezes não fica....que descanse em paz
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