segunda-feira, janeiro 29, 2007
Crónica fotográfica
Fotografia de Henri Cartier-Bresson
Fotografar e bater em retirada
Que faz um fotógrafo caído no meio de uma multidão, pobre e faminta, que o olha fixamente?
Sorri, enquanto calcula a profundidade de campo através da hiperfocal, procura o melhor sítio para fotografar, ou esconde a máquina atrás do ombro e tenta entender a dor dos que o rodeiam?
Woody Allen em Manhattan, um dos filmes da minha vida, num diálogo memorável reconhece que " o problema é sabermos quem tem a coragem de se atirar de uma ponte para salvar um suicida. Eu não tenho que responder porque não sei nadar!". Eu também não. Mas ao fotografar por vezes sinto-me como um estranho que violenta os outros apenas pela presença. Claro que ponho em acção a capa protectora profissional, idêntica à que os médicos usam em situações de emergência, e tento sobreviver e fazer algumas fotografias.
Em Nova Deli, numa escapadela à viagem oficial de Cavaco, uma jornalista a meu lado ficava de rastos depois de ter atravessado uma multidão de infelizes que pediam esmola num quadro desafiando a precariedade da condição humana. Eu fotografava rápido, Leica M8, preocupado com a composição, a luz, o instante. Fotografava e retirava. Confirmava o balanço dos brancos, a sensibilidade, a focal, mais uns passos, expressão, movimento, mais uma foto.
No terreno a rapidez faz parte do respeito pelos outros. Numa situação extrema quanto mais tempo se estiver a fotografar mais agressivos e indesejáveis nos tornamos.
Henri Cartier-Bresson gostava de citar De Gaulle para quem o bom artilheiro devia disparar e retirar logo em retirada. É um bom exemplo.
A ética do fotógrafo começa na postura que põe no exercício do trabalho e logo de seguida na forma eleita. Uma imagem deformada, demagógica, de certeza que não respeitará o assunto a ser fotografado.
A minha colega ficou em estado de choque. Deixou-se envolver na acção, perdeu o controle do seu ponto de vista, esqueceu-se que um jornalista não se comove, está ali para comover os outros. Não é causa, produz efeito.
Em 1977, em Fátima, ao olhar uma criança deformada desatei num pranto. Tive de abandonar o santuário, não suportei ver aquela imagem terrível. A lembrança do meu filho André que tinha 1 ano foi fatal. Esta experiência levou-me a procurar sobreviver na frente de batalha, mesmo que não se trate de uma guerra.
A Índia é hoje um país mais humanizado do que há 15 anos, mas a miséria é ainda relevante, talvez das mais chocantes do Mundo ao lado dos países mais atrasados de Àfrica como a Libéria, Guiné e zonas de Angola- falo do que conheço.
Para se fotografar estes meios é necessário pormos de lado preconceitos, medos, paternalismo. São precisos nervos de aço. O pior vem depois do trabalho feito, quando começamos a ver o que fotografámos e só encontramos infelicidade e olhares que parecem pedir ajuda eterna.
As minhas fotografias podem fazer alguma coisa pela injustiça, mas por muito que façam será nada nas vidas daquela gente. Nada.
A fotografia, o fotojornalismo, não dá para mudar o Mundo. È verdade que fotografias houve que influenciaram o rumo da História, mas não acredito em militâncias culturais e afins.
Nós fotógrafos não somos importantes, não tomamos decisões para orientarem o Mundo.
Apenas fotografamos, somos testemunhas activas, por vezes passivas daquilo que se nos dá a ver. Eternizamos instantes, tornamos a memória colectiva mais viva. Somos delatores das injustiças mas não resistimos a tentações e adoramos eternizar o belo e feminino. O nosso prazer de ver torna-nos maçadores, voyeurs, lamechas e heróis.
Ao regressar da Índia sinto que vi um país entre a janela de um autocarro e uns paços acelerados pelas ruas mais indignas da humanidade.
Vi o Sol a pôr-se, dourado, na Goa da alma portuguesa, mas ao longe já cresciam as torres do betão armado ao turista. Vi cidades com paredes espelhadas erguerem-se para os céus, à volta com indigentes a sobreviverem nas barracas de chapa.
Se não fosse fotógrafo não sei como faria esta catarse.
Luiz Carvalho
(esta é uma crónica que eu vou começar aqui no Fatal regularmente)
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São destes posts que eu gosto.
ResponderEliminarAssim, fazemos as "pazes".
ResponderEliminarRealmente, Luís de Carvalho, com posts destes você até me faz esquecer o "Santana".
ResponderEliminarOs Santanas, os Pintos e as Carolinas estão realmente a mais num blog onde você, afinal, nos consegue surpreender tão agradavelmente.
Quando que quer (ou lhe apetece...).
vez como nao 'e so de "polemica" que tu gostas.
ResponderEliminarBela crónica.
ResponderEliminarum grande bem haja, que é disto que nós estamos (eu estou) à espera.
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