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quinta-feira, junho 29, 2006

Santa Comba - beleza portuguesa

O serial killer de Santa Comba Dão tem todos os ingredientes para um filme de David Linch à portuguesa. Infelizmente as vítimas, familiares e amigos de quem sofreu e sofre todo o horror desta história nem poderão ter alguma ideia sobre isto.
A história de um GNR, salazarista assumido, reacionário extremo, devoto da irmã Lúcia e que matava quando era mês de peregrinação a Fátima,indo de seguida em cínica e esforçada pedalada até ao santuário, é perturbante mas tem Made in Portugal.
É aqui que se cruzam os ícones da nação: Salazar, Fátima e brutalidade. É como em American Beauty quando o oficial patriota, pai severo e militante dos bons costumes, se revela um panasca miserável e infeliz no fim da fita.
O choque que abanou o berço de Salazar, Santa Comba o altar da pátria fascista, a vila onde populares morreram em balas perdidas, pós 25 de Abril, por causa da cabeça em bronze do homem das botas, não quer acreditar que aquele GNR filho da terra era afinal..um filho da puta.
Para aquela gente, iludida no catecismo do moralismo serôdio, na ordem antiga de Deus, Pátria e Autoridade, o choque da realidade não é aceitável. Levantam foices, e perseguem jornalistas, pegam em tesouras e querem podar repórteres como os comunas de Abril fizeram rolar a cabeça do ditador.
As candidatas a ex-vítimas perfilam-se nos tablóides do burgo, mas é na imprensa de referência que se percebe da dimensão dos feitos do facínora.
Na campa rasa do cemitério de Santa Comba, há uma alma penada que não deve parar de se agitar por baixo daquela lage de granito que queria eterna.
Uma terra que deixa de ser Santa para ser Comba.
Arrepiante mas português. Um argumento para uma grande fita.

Não resisto a transcrever a excelente crónica de Fernanda Câncio no DN, precisamente sobre este caso.

Passei o fim-de- -semana em Santa Comba Dão, a entrevistar pessoas que conviveram décadas com um homem franzino e prestável, daqueles de quem se diz que são "amigos do seu amigo" e "não partem um prato", a quem nada faltava para ser aquilo a que se costuma chamar "um pilar da comunidade". Um ex-polícia defensor da ética do trabalho que construiu o primeiro andar da sua moradia com as próprias mãos, que plantava vinhas e roseiras e semeava alfaces e criava coelhos e matava porcos e foi eleito pelo PSD para a junta de freguesia e era membro da direcção da casa do Benfica local e que assestou na parede da sua casa o seu mote de vida: "Se tens inveja do meu viver, trabalha, malandro." Que acreditava na trilogia deus-pátria-autoridade, venerava Salazar e a quem só talvez faltasse o fado para fazer o pleno dos três efes, com o seu amor ao futebol e a sua romaria pedestre a Fátima quatro dias depois de ter - alegadamente - asfixiado a sua terceira vítima.

Se fosse um tipo de cabelo desgrenhado e vestido de cabedal, que fumava charros e coleccionava tatuagens e piercings e frequentava antros de libertinagem enquanto vivia de expedientes e do rendimento social de inserção, é de crer que não se assistisse na sua terra a uma tão devastadora onda de perplexidade e que não se encontrasse necessidade de invocar "o mistério que é o homem" para apaziguar a angústia das almas. Mas imaginar assim o companheiro das patuscadas, dos tremoços e das bujecas e do pendão do glorioso como tenebroso serial killer é coisa do outro mundo. A culpa há-de estar alhures - porque crer que é dele é acreditar que podia ser nossa. E a isso, no resto como no futebol, nunca havemos de nos habituar.

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