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sábado, fevereiro 24, 2007

O conto do vigário a José António Saraiva


Passo a transcrever esta crónica de José António Saraiva, publicada no Sol. E esta hein ?...

CONTEI nesta coluna que no Natal tive um acidente de automóvel que deixou o meu carro muito amolgado. Ao fim da tarde de quinta-feira da semana passada, após várias peripécias relacionadas com o seguro, fui informado de que o carro estava pronto. Estabeleci então o programa para a manhã seguinte: como não iria trabalhar, dado o SOL ter antecipado o dia de saída por causa do referendo do aborto, levaria a minha mulher ao emprego (junto à Avenida da República), passaria depois pela António Augusto de Aguiar para devolver o veículo de aluguer que entretanto tinha usado, meter-me-ia a seguir no Metropolitano na estação do Parque e sairia no Jardim Zoológico – que fica a dois passos da Mercauto, onde o meu carro fora reparado.

CUMPRI o programa à risca, com uma pequena alteração: depois de entregar o carro de aluguer fui comprar o jornal e sentei-me a lê-lo numa pastelaria da António Augusto de Aguiar, enquanto tomava o pequeno--almoço (um chá e uma torrada). O dia estava a correr bem.
Chegado à Mercauto, porém, tive a primeira surpresa: o automóvel não estava lá. Telefonemas para baixo e para cima, contactos pelo intercomunicador, mas nada: o carro tinha saído sem ser, sequer, reparado! A recepcionista, diligente, fazia-me perguntas:
Com quem é que falou? Quem lhe disse que o seu carro estava pronto?

Mas eu não sabia dizer nada: fora a minha secretária quem tratara de tudo. A senhora tirou então a única conclusão lógica (a que eu, aliás, já chegara):
– Então telefone à sua secretária.
Assim fiz. Expliquei-lhe a situação, pedi-lhe para tentar perceber o que acontecera e sentei-me num sofá à espera. Passados longos minutos, lá veio a explicação: o carro fora, de facto, transferido para outra oficina, por opção da seguradora, e tinham-se esquecido de nos avisar. A outra oficina ficava no Prior Velho. Pedi desculpa à recepcionista da Mercauto pela maçada que lhe dera e meti-me num táxi a caminho da nova morada.

A RUA que me indicaram ficava numa daquelas zonas industriais incaracterísticas que existem em todos os subúrbios, onde a fealdade impera e é quase impossível encontrar uma morada, porque os nomes das ruas não são visíveis, e as portas, em regra, não têm números. Vêem-se portões, barracões, rampas, letreiros comerciais – mas como descobrir uma vulgar morada no meio desta floresta? Como o chofer do táxi também não conhecia a zona, andámos às apalpadelas e eu tive de sair do carro para pedir ajuda.

Finalmente lá descobrimos a oficina – e aí, para compensar, as coisas revelaram-se surpreendentemente fáceis: mal entrei, dei de caras com o meu automóvel. Não posso dizer que o reencontro tenha sido comovente (como seria com o Paco, se não o visse há três semanas) mas é consolador uma pessoa voltar a sentar-se ao volante do seu carro após um tempo de separação forçada. É um ‘regresso a casa’ em ponto pequeno.

QUANDO, a caminho do sítio onde moro, passava na 2.ª Circular, verifiquei que tinha pouca gasolina e parei num posto da Repsol para abastecer. Mal tinha saído do carro, pára ao meu lado outro Mercedes e o condutor chama por mim, enquanto abre o vidro. Aproximo-me e ele diz-me de dentro:
– Então, estás mesmo bom? Sabes, eu já não estou na Mercedes... Estou no Corte Inglés. Sou director do Corte Inglés... Então, como se tem portado a máquina? – e apontou para o meu carro.
Eu não me lembrava nada daquela cara. Mas, dada a conversa, admiti que fosse o homem que me tinha vendido o Mercedes. Ainda que estranhasse o tratamento por tu...
O fulano continuou:
– Por que é que não foste ao desfile de moda no Corte Inglés? Mandei-te o convite... Estava lá toda a gente! – Balbuciei uma explicação mas o homem não quis ouvir. Disse-me, em contrapartida, para apontar um número de telefone que me ia dar. Respondi-lhe que não tinha caneta. Ele perguntou-me então, como se tivesse tido uma súbita lembrança: – Qual é a altura da tua mulher? – Disse-lhe que era a normal (o que não era exactamente verdade). Nesse momento ele abriu a porta do carro, saiu, disse para mim «abre a bagageira», foi à bagageira dele, tirou dois sacos de plástico, meteu-os na minha.

Eu assistia a tudo, atónito. Não percebia o que estava a acontecer. Admiti que, sendo director do El Corte Inglés, teria certos artigos de promoção para oferecer a clientes especiais. Mas ele atalhou:
– É um casaco de pele para a tua mulher e outro para ti. Custam 870 euros cada, mas se te perguntarem diz que custaram mil. Não digas menos de mil!
O homem fechou então a porta traseira da minha carrinha e fez menção de se ir embora. Era agora o que eu mais desejava: que se fosse embora. Não sabia o que estava dentro dos sacos nem isso tinha qualquer importância. O importante era acabar com aquela situação insólita.

Ao estender-me a mão para se despedir, o homem acrescentou: – Se fores ao Corte Inglés, não te esqueças de pedir para falar com o Vieira. Eu ajudo-te no que for preciso –. E mesmo a finalizar:
– E dá aí qualquer coisa para o IVA.
Os casacos são oferta minha, mas é preciso pagar o IVA.
Com alguma relutância fui puxando da carteira, enquanto ele debitava: – Algumas pessoas dão mil euros... – Mil euros para o IVA? – estranhei, escandalizado. – Dás o que for possível – tranquilizou-me. Consultei a carteira, tirei quase todo o dinheiro que lá tinha (apenas deixei uma nota de 5 euros) e estendi-lho: –- É o que tenho – rematei, enquanto ele agarrava as cinco notas de 20 euros, antes de se meter no carro e arrancar velozmente.

SÓ AQUI tive a suspeita de que poderia ter caído no conto do vigário.
Se o homem fosse o que me vendera o carro nunca me trataria por tu. Se fosse director do El Corte Inglés e andasse com artigos na bagageira para oferecer a clientes ‘especiais’ nunca lhes pediria depois o dinheiro do IVA (que às tantas já ia em mil euros!). E os próprios modos do homem não eram os de alguém habituado a lidar com pessoas de certo nível mas sim os de um frequentador de bas-fonds e ambientes suspeitos.
Quando cheguei a casa já não tinha dúvidas de que fora enganado. Os casacos não eram obviamente ‘amostras’ do El Corte Inglés mas sim retalhos a fingir de casacos ou, na melhor das hipóteses, roupa dos ciganos. Estava tão irritado que não abri sequer o porta-bagagens para ‘tirar a limpo’ o que se passara.

Apenas o fiz umas horas mais tarde, depois de refeito da irritação. E tive uma surpresa: os casacos eram mesmo casacos! A imitar pele. Ambos castanhos-claros, o de senhora mais amarelado, com o pêlo da parte de dentro, excepto na gola e em baixo, na bainha, a formar um debrum. O meu era um casaco-blusão normalíssimo, de corte razoável, perfeitamente utilizável aos fins-de-semana.
A etiqueta, porém, revelava o ‘pecado original’: a origem chinesa. Por baixo da informação «100 % Polyester», figurava um importador de Madrid com nome chinês. Os casacos estão certamente à venda, portanto, nas lojas chinesas. Por 15 euros cada ou menos – e eu passara voluntariamente 100 euros para as mãos do homem para pagar o IVA!
Embora mantenha grande estima pelo meu automóvel, tenho de reconhecer que anda azarado. No Natal veio para cima de nós um carro com dois ucranianos, que fugiram depois do acidente; no dia em que vou buscá-lo à oficina sou descaradamente vigarizado por um burlão. Qual será a terceira?


6 comentários:

  1. Já cá faltava o do rafeiro Paco.

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  2. Tive o prazer de ser aluno do pai deste senhor... Um comunicador por excelência.
    Não dá para acreditar nesta cena!
    Afinal, se lhe deu os 100 euros, era porque queria os casacos, ou será que não queria?!
    É que no "conto do vigário" não existe propriamente vítima mas, pelo contrário, existem dois culpados: o que engana e o que se deixa enganar (ou que é enganado, para ser mais simpático).
    Um dia presenciei numa esquadra um tipo a queixar-se de que tinha sido enganado... Porque tinha ido às prostitutas e, no quarto, já depois de ter pago, saiu-lhe uma prostituta de três pernas. Então, não é que o homem queria fazer uma queixa porque entendia ter sido burlado.
    E isto aconteceu, pelos menos, há 10 anos. Passados estes anos, afinal, continuam a existir ingénuos!

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  3. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  4. "Bófias, editores e putas. Está cheio de qualidade este blog!" ... E moralistas e correctores ortográficos e intelectuais e ...! São de elevada qualidade alguns visitantes deste blogue.
    Mas, pensando melhor, bófias e putas, ainda vá que não vá, agora bófias e editores é que já é mais estranho, porque, na parte que me toca, não simpatizo muito com certos jornalistas/editores, sem generalizar, embora gostasse muito de ser jornalista... Para poder dizer certas verdades ás claras em vez de me esconder atrás de um "anonymous" ou de um "212ahora", o que, convenhamos não é muito ético, fazendo alguma autocrítica.
    ...
    Mas, é capaz de ter alguma razão. Convém mudar de assunto, o que não significa elevar o nível... Porque um blogue controverso, irreverente e provocador não é necessariamente de baixo nível.
    Antes pelo contrário, porque um dos males deste país é ser incomodativo falar de assuntos inconvenientes, mas que existem e são o reflexo da nossa sociedade.
    Mesmo quando se fala de putas, sobretudo quando estas se relevam por serem pessoas cultas.
    De baixo nível, sim, é confundir o exercício das ideias dos autores dos blogues com a sua profissão ou com os cargos que ocupam. Isto é censura e arrogância.
    Amanhã é segunda-feira e este capítulo fica encerrado. Alguns "anonymous" não merecem tanto perda de tempo. E, afinal, a que propósito estou aqui armado em "advogado do diabo", ou, se calhar, armado em parvo!
    Agora vou passear o meu rafeiro, que ele está ali a ganir para ir nadar.

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  5. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  6. Bófias, editores e putas. Está cheio de qualidade este blog!
    Não há duas sem três. Apague lá outra vez.
    Não sei o que o incomoda tanto nesta frase se o bófia ali em cima a tem no post dele. Toquei muito perto do osso? Sinceramente não percebo, pelo teor do seu blog devia achar este um comentário banal. Rabo preso?

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