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sexta-feira, janeiro 12, 2007

A angústia do fotógrafo antes de disparar sobre a Índia pobre e moderna

Foto de Luiz Carvalho

Nós fotógrafos de imprensa temos de ter a pele dura e olhar clínico. Não é fácil consegui-lo. Mas a tarimba de repórteres deu-nos essa defesa e com ela a possibilidade de podermos trabalhar com algum à vontade na rua como a terceira profissão no Mundo que o faz.

Aqui na Índia abandonarmo-nos no meio da multidão, carregados de câmeras e gestos suspeitos torna-nos alvo das atenções. Temos de contornar obstáculos físicos, ignorar os camiões que em contra-mão ficam a um passo de nos esmagar, sorrir aos mendigos e dar uma nota de 10 rupias sem despertar a mobilização geral dos pedintes unidos, saber respeitar esta cultura e gostar cá por dentro das pessoas que parecemos ignorar mas que apenas procuramos que não se metem entre o nosso olhar e a máquina fotográfica.

Uma colega da comitiva não resistiu a tanta miséria humana e entrou em choro, depois em depressão que lhe tirou o sono. Outra olhou para o lado, recusou-se a ver o olhar de amêndoa de uma criança que queria vender dvd`s através da janela do táxi eternamente parado num semáforo. Também há aqui vermelhos, amarelos e verdes, embora sejam ignorados a maioria das vezes.

Se pensasse nessa hora nos meus filhos choraria também, se não fosse a Leica M8, rápida e discreta a disparar, servindo-me de escudo, não resistiria à comoção. Embora o exteriorizar de sentimentos não seja uma prática muito aceitável nos dias de hoje.

As melhores fotografias humanistas foram feitas por fotógrafos muito discretos e aparentemente pouco envolvidos na acção. Eugene Smith, Salgado ou Nachtwey são apenas exemplos, quando as suas fotografias são marcantes, humanas e empenhadas politicamente.

Hoje a 30 quilómetros de Nova Deli descobri juntamente com a Luísa Meireles e o nosso correspondente na Índia, uma cidade em construção eruptiva, fazendo lembrar a Xangai que cresce do dia para a noite.
Os edifícios de vidro, desafiando as leis da engenharia impõem-se, enquanto os pobres, famintos e desgraçados resistem entre manilhas de esgoto para enterrar, estendidos como bacalhau seco, à espera da morte, da salvação ou do milagre do crescimento económico indiano.

Empresas de prestação de serviços e multinacionais implantam-se, chegam os primeiros tecnocratas que andam de ricochó, almoçam comida marada nos triciclos dos ambulantes e formam comunidades de estrangeiros que vêem na Índia a Katmandu dos anos sessenta para jovens rebeldes sem causa. Estes têm causa: querem trabalhar, são ambiciosos e vão abraçar o mundo do negócio.

Hoje percebi como seria caricato Cavaco Silva montar num elefante. Há 15 anos este país, quando Soares aqui passou, era rural, pobre, sem tecnologia, nem economia aberta. O elefante era o símbolo dessa sociedade tranquila, conservadora, pouca ambiciosa, sem uma classe média emergente.
Hoje a Índia disputa pib com a China, há um Lamborghini amarelo à porta do meu hotel, porque a tecnologia aí está a dar cartas e a classe média quer ser alta e viver como a europeia. Logo, Cavaco só pode querer ouvir falar em negócios e cooperação e isso é mesmo a política mais realista que se pode ter já.

Ainda procuro um camelo que vi na estrada a puxar uma carroça, mas a imagem passou-me como se o passado tivesse ali ficado naquela foto que não fiz.



Amanhã Goa.

3 comentários:

  1. As crianças, os olhos das crianças...realmente sem o "escudo", e ainda mais para quem tem filhos, é difícil segurar a triseza... Aguardamos o relato de amanhã..!

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  2. obrigado pelo excelente relato. bem haja!

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  3. Se a foto é de fazer chorar imagino a realidade... a cores e com cheiro.


    "Mas as crianças, Senhor...!"

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